Ministra Maria Elizabeth (STM) Profere Palestra na Conferência Internacional da FIFCJ/ABMCJ em Goiânia no último mês de novembro de 2019

PALESTRA

“DO QUE FALAMOS QUANDO FALAMOS DE GÊNERO?

Maria Elizabeth Guimarães Teixeira Rocha

Inicialmente eu gostaria de agradecer a Dra. Laudelina Inácio da Silva, Presidente Nacional da Associação Brasileira das Mulheres de Carreiras Jurídicas, Instituição a qual eu integro, pelo honroso convite para proferir palestra de abertura nesta relevante conferência internacional sobre um tema tão relevante que é a construção da igualdade de gênero e dos direitos das meninas e mulheres.

E sob esta perspectiva entendi por bem pontuar na palestra introdutória a discussão sobre “O que falamos quando falamos de Gênero?”, um assunto complexo e desafiador.

O termo “gênero” vem do latim genus que significa nascimento, família, tipo. Tradicionalmente é utilizado como um conceito gramatical de classificação de palavras, dividindo o masculino, o feminino e o neutro. Embora em sua origem grega “genos” e “geneã” se referissem ao sexo das pessoas, somente a partir do século XV que essa associação ocorreu de fato, e o vocábulo gênero utilizado como sinônimo do sexo dos indivíduos.

No final do século XIX, início do sec. XX, a oposição de um sistema binário heterossexual diferenciou biologicamente o ser humano, e, na década de 1930, a Teoria dos Papéis Sociais fixou as representações entre homem e mulher.

Apropriado pelos estruturalistas franceses, pela psicanálise e pela teoria feminista o conceito de gênero começou a ser compreendido a partir de códigos e sistemas que governavam os fenômenos sociais, numa novel tradução cultural do biológico, definido por qualidades inerentes ao feminino e ao masculino.

Procedeu-se, então, à distinção entre sexo e gênero; o primeiro marcado pelo determinismo fisiológico; o segundo, culturalmente construído. Nesse sentido, quando Simone de Beauvoir afirmou, em O Segundo Sexo, que: “ninguém nasce mulher: torna-se mulher”, deixou claro a existência de um cogito inaugural da nova subjetividade feminina, claramente descentrado da fisiologia.

O corpo passou a ser concebido como “uma situação”, consequentemente, o sexo não poderia qualificar-se como uma facticidade anatômica pré-discursiva, estável e imutável. O gênero sempre o precederá.

Seu conceito perpassava por um sistema de signos ou significados, produto das ideias humanas, implementado e perpetuado por organizações e estruturas societárias.

Sem embargo da importante apropriação pelas feministas da categoria de gênero universal e binária para considerar “a luta entre os sexos”, contemporaneamente, é imperioso o repensar teórico para inseri-lo na discussão sobre a interseccionalidade e a discriminação múltipla, tal qual o fez Judith Butler. Mais, para desvendar as opressões e os constrangimentos sob a ótica das relações de poder, que vitimizam não apenas as mulheres.

Efetivamente a construção do ser homem e do ser mulher, bem como as trajetórias dos sujeitos não são unívocas nem homogêneas, são campos de confrontos atravessados por fluxos multidirecionais. A dialeticidade reflete experiências distintas dos indivíduos, reflete um campo de possibilidades culturais que situa o corpo num mundo em incessante transformação.

As desigualdades se interconectam, interseccionam e articulam com a etnia, a idade, dentre outras marcas constitutivas, a refutarem uma identidade fixa da pessoa a ser representada.

Deslocar o feminismo, portanto, possibilita que se franqueie a questão da identidade; que não se organize a pluralidade, mas a que mantenha aberta sob constante vigilância, pois o que é presumido acaba por restringir aqueles a quem se espera libertar.

Se as identidades deixarem de ser fixas uma nova conformação social surgirá das ruínas da antiga.

Nessa linha, Nancy Fraser e Linda J. Nicholson propõem uma aproximação da teoria feminista ao pós-modernismo, batizado de pós-feminismo, que “deixaria de lado a ideia de sujeito da história, substituindo as noções unitárias de mulher e da identidade genérica feminina, por conceitos de identidade social que são plurais e de constituição complexa, nos quais o gênero seria somente um traço relevante.

Desnaturalizar o gênero, libertando-o daquilo que Nietzsche refere-se como a metafísica da substância e substitui-lo da condição de “atributo” do ser para compreendê-lo como uma rede de conexões culturais e historicamente convergentes, a meu ver é o que deve predominar no discurso.

A consequência implica em um relativo abandono do conceito estruturante da teoria feminista para definir a dominação masculina, e elastecê-lo à todas as pessoas segregadas e excluídas – homens e mulheres heterossexuais, homossexuais, bissexuais, cisgêneros,  transgênros – a fim de delinear o cenário generofóbico de grupos oprimidos.

Indiscutivelmente, toda a forma de hegemonia vêm sendo paulatinamente desconstruída para dar espaço às identidades coletivas e seus modos de ser e de viver, numa fusão de horizontes que une, fragmentando.

A modernidade e a contemporaneidade argumentam tanto com o direito das minorias, quanto com o direito à liberdade de desenvolvimento da personalidade, buscando a interação entre o eu e a sociedade, num diálogo permanente.

Está-se diante de um imperativo axiológico que não se rende ao banalismo do politicamente correto, ao contrário, normatiza conquistas civilizatórias que manejam diretamente com os princípios supremos da Democracia.

A tríade liberal fundada nos ideais da liberdade, igualdade e fraternidade, rendeu ensejo às novas inspirações como liberdade, diversidade e tolerância, ideais que informam as virtudes cívicas neste início de século. O princípio da fraternidade, pilar do iluminismo, deve ser concebido não como prática pastoral, mas como quintessência do Humanismo, por excluir o confinamento do indivíduo e despertar nas relações humanas a sensibilidade de todos para com cada um. De igual modo, a tolerância sobreleva-se como atitude de respeito, pois onde reina a tolerância, a diferença não mais é estranha ou ameaçadora.

Foucault em obra clássica, Vigiar e Punir descreve as metamorfoses que ocorreram nos últimos séculos nas formas de castigo e dominação das pessoas, abordando um processo que vai do controle e disciplinarização em espaços fechados até a atualidade, ao comportamento e as ações em espaços abertos. Ao discorrer sobre as artimanhas da liberdade, afirma que “onde há poder, há resistência, e as resistências ao poder, muitas vezes, têm força irresistível.”

A liberdade, por sua condição ontológica, é insubmissa: diz sempre não às forças que procuram controlá-la. E o faz em condições fora do terror e do constrangimento, o faz por meio de um afrontamento contínuo. O que está em jogo é a questão das identidades, do sentimento de pertencimento, afinal, é impossível ao indivíduo renunciar às características que compõe a sua personalidade. As lutas de resistência em torno do estatuto da individuação almejam o encontro do “eu” no mundo.

A leitura que os pensadores psicanalíticos como Lacan e Freud fazem da identidade, é que ela se forma ao longo do tempo, por processos inconscientes. Ela permanece incompleta, sempre sendo construída, e surge não tanto da plenitude da que já está dentro de nós como indivíduos, mas de uma falha de inteireza que “é preenchida” a partir de nosso exterior, pelas formas como imaginamos sermos vistos pelos outros. Psicanaliticamente, nós continuamos buscando a “identidade” e construindo biografias. Platão sugeriu, em um de seus diálogos, a ideia do “cuidado do si”, mas como cuidar de si e “tornar-te o que tu és” sem subordinar a diferença à identidade? Sem espaços de liberdade que permitam a construção do Homem enquanto Pessoa?

 Winnicott enfatiza que quando se fala de um homem, fala-se dele justamente como a soma de suas experiências culturais. O todo forma uma unidade. A constituição do ser humano passa por fatores básicos, quais sejam; fidedignidade, ritmo, confiança e credulidade, fatores esses denominados de ciclo benigno. Explicando melhor, podemos afirmar que o ser humano se distingue do animal não somente pelo atributo da racionalidade, mas e principalmente, por poder, diante de um ambiente facilitador, se desenvolver como um ser psíquico. Para que não tornemo-nos seres embrutecidos, necessitamos de ter vivido uma constância ambiental de cuidados que acaba por ficar marcada sensivelmente como credulidade e segurança.

  E o que é ser crédulo? O que é sentir-se seguro? Longe de qualquer menção religiosa, ser crédulo significa acreditar, sendo essa crença um sentimento vital para que o ser humano possa ser um sujeito afetado pelo outro, possa pensar-se em segurança, possa pensar-se no lugar do outro e não somente reagir às situações a partir de um egocentrismo exagerado. O senso de crença é o principal do nosso desenvolvimento, seguido pelo de segurança.

O sentimento de fidedignidade, por sua vez, projeta a ideia de que o ambiente nos sustenta, nos acolhe e protege; o de continuidade advém do ritmo dos cuidados que temos ao longo da vida e de confiança reside na convicção de saber que o mundo não me persegue, não me ignora, não me discrimina, ao contrário, considera-me digno, considera-me nos meus movimentos de inclusão. Ele depende, principalmente, do fato de que as leis, primeiro as da família, depois as da escola e por último as do próprio Estado, sirvam a todos indiscriminadamente.

Certamente, a credulidade do homo sapiens advém da confiança no aparato normativo estatal; diante da dúvida opera-se a dissolução do sujeito enquanto ser coletivo. Se o pacto comunitário não abarca a todos indistintamente, está-se diante da exceção, mais grave, da anomia, que implica na ruptura da lei social, da lei edípica, da lei do Pai, representado em instância última pelo próprio Estado. A descontinuidade do senso de segurança, já que a norma fundante da sociedade não mais representa algo constante e sim algo composto de interpretações várias, descortina o colapso do contrato entre os indivíduos. Pior, contamina a autonomia do “eu sou”, pelo espectro do “eu sou assombrado”, um desmonte que posterga e inviabiliza as relações humanas.

Neste contexto, o gênero, tão bem recebido nos círculos acadêmicos por ser aparentemente mais neutro do que “mulheres” ou “feminismo”, desloca-se de um conceito explanans de Hempel,  para fundar o atual debate em torno da “ideologia de gênero”.

A separação entre sexo – dado da natureza – e gênero – construto social – não mais atende a cultura pós moderna que organiza e distribui feminilidades e masculinidades, até então definidos somente por homens e mulheres. Até porque, a construção das identidades socialmente edificadas em contextos de opressões e assujeitamentos, não são rígidas o suficiente para impedir brechas, escapes, fraturas e aberturas no agir dos sujeitos que acabam por impulsionar mudanças nos próprios padrões normativos.

 O gênero é performativo e deve ser aferido pela investigação empírica, porquanto tanto as leis causais quanto as leis de coexistência figuram como premissas de explicação genuínas.

Por tudo isso, as relações de gênero como categoria histórica analítica, transcendem à diferença sexual binária entre homens e mulheres, dando lugar a novos códigos legitimadores da produção dos saberes.

Nesse caminhar, o conceito de gender das teóricas feministas, ganhou dinamismo científico para ser entendido para além dos padrões socioculturais identificadores do masculino e feminino.

Ampliaram-se as concepções sobre a orientação sexual, identidades e papéis contextualizados como categoria mais lata, que abarca os conflitos e desafios na formação e nas escolhas pessoais ante a plasticidade dos corpos; tudo conectado com outras instâncias ou esferas – políticas, raciais, sócio-econômicas, etc.

Daí, o ponto chave para o aprofundamento democrático desta discussão está na interseccionalidade, a traduzir-se no somatório de critérios de segregação múltipla, determinante para a compreensão das complexas lógicas de destruição da alteridade.

O desafio da legitimidade na contemporaneidade não é opor a igualdade à diferença, mas à desigualdade, e rechaçar o apartheid que obstrui a interação entre pessoas pertencentes a universos distintos. Pressuposto para uma sociedade pluralista, o diálogo possibilita a concórdia nos confrontos entre os diversos grupos, posto ser inadmissível a hierarquização entre humanos ou o seu confinamento.

É fato não terem as sociedades se libertado ainda da  circunscrição classe dominante ou corpos dominantes, sobre classes dominadas ou corpos dominados. A democracia radical como possibilidade de todos serem partícipes – e aqui eu me refiro a serem ouvidos, a falarem, a governarem e a serem governados – é um porvir, uma construção sem pausa à qual todos devem estar atentos.

E enquanto isso, os corpos marcados como diferentes e percebidos como subordinados sempre causarão problemas, uma alusão aos pobres, às mulheres, aos indígenas, aos negros, homossexuais, transgêneros e demais oprimidos sobre as quais o poder se impõe para reforçar o apagamento e a invisibilidade de suas posições de subalternidade.

Sabiamente a história nos ensina ser sempre proveitoso criar problemas. Nós mulheres sempre os criamos. Foi assim com Antígona frente à Creonte na tragédia de Sófocles, atitude interpretada por Hegel como indicação da necessária passagem da lei divina e familiar para a lei pública e estatal; foi assim no limiar da modernidade da França Revolucionária com Olympes de Gouges frente aos formuladores da paradoxal “Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão”, enunciado explícito da exclusão das mulheres da universalidade, e, foi assim um século depois com as sufragistas, quando reivindicaram que nenhum Estado poderia se intitular democrático se as mulheres não tivessem o direito de votar, instituindo-se a primeira grande crise da representação.

Em realidade, quando a diferenças que inferiorizam adentram os espaços públicos, elas interrogam, confrontam e opõem-se à um regime de validade de verdades sobre o que é o mundo, mormente quando os rebaixamentos articulam desfavoravelmente com  as individualidades.

Nesta nossa reflexão, o que está em jogo é a “ontologia do corpo”, referencial da díspare distribuição da precariedade da vida a partir de marcadores identitários. Não se pode compreender o corpo fora da cultura e não se pode compreender a cultura fora dos domínios da vida social e de suas vicissitudes, uma vez que ambos inexistem temporalmente aquém dos processos históricos de construção de significados.

Numa apropriação da linguagem foulcaultniana, gênero é o saber que estabelece significados para as diferenças corporais. Sendo um saber e, entendido que saber e poder nunca estão dissociados, gênero tem uma acepção eminentemente política como uma forma primária de dar sentido às relações de poder. Portanto, para conceituá-lo, deve-se adotar um novo referencial que autorize investigar códigos passíveis de transformação.

O gênero não se reduz, assim, à uma mera decorrência biológica dos corpos sexuados, certamente um paradigma, mas não o único. Ele abarca as diferenças percebidas e hierarquizadas, as diferenças apreendidas e significadas. Diferenças que emergem por terem suprimido a multiplicidade subversiva de uma sexualidade que rompe a hegemonia heterossexual e reprodutiva

Eu exemplifico: porque as Ciências Sociais, Políticas e Jurídicas não discutem os diferentes formatos dos dedos ou o tamanho da cavidade pulmonar entre os humanos? Simplesmente porque eles não exprimem relações sociais dessemelhantes, não exprimem dignidades violadas.

A lógica heteronormativa binária de gênero, como produto histórico-cultural, opera exclusões de cidadãos e cidadãs, razão pela qual devem estar asseguradas as características plurais da liberdade e as reivindicações fidedignas.

Nas palavras de Fernanda Lage: “ Diferentes segmentos da sociedade – e não apenas os socialmente privilegiados – deveriam poder ser ativos nas decisões sobre o que preservar e o que consentir que desapareça. Não há a obrigação de conservar todo o estilo de vida ultrapassado […] mas a real necessidade – para a justiça social .”

Todo corpo vivente, mormente os vulneráveis, que carregam em seus estereótipos identitários a violência simbólica, muitas vezes transformada em discurso do ódio tanto pelo Estado quanto pelos micropoderes, necessita libertar suas interdições.

O desvendamento das relações de gênero escancara a hierarquização dos sujeitos em sua multidimensionalidade e dá conta de um sistema disciplinário que vai além da noção simplista de “homem dominante versus mulher dominada”. As assimetrias da corporificação são dialógicas e fornecem subsídios valiosos para a superação das fronteiras do conceito de identidade.

Muito obrigada!

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